sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Ágata e os Anjos

Ora, boas nôtes, que já está escurinho na rua.

Recordemos a grande Ágata, a senhora que já desconfiava quando ele chegava tarde para jantar e, sem qualquer conversa, dizia depressa que tinha estado a trabalhar. Ele, que se sentava à mesa e, com safadeza, mentia para ela. Recordemos Ágata, que ia no seu jogo e punha as mãos no fogo que não era assim. Ela já sabia tudo mas ele, lá no fundo, pensava que não. Nem sequer disfarçava as marcas deixadas no seu jaquetão. Sim, as madeixas negras que hoje ainda nega, mas que Ágata lhe diz que são da mesma dona daquele novo aroma que ele traz consigo. Foi por isto que Ágata, mulher de armas, não só lhe disse como lhe cantou, que saísse da sua vida, para ir, que ela não queria sofrer. Repetiu que saísse, que morria de ciúmes, ai, daquele perfume da outra mulher. Não o queria ver, insistia que fosse, sem nenhum queixume, e levasse o perfume da outra mulher. Aparentemente, Ágata não é gaga, mas apenas repetitiva.

Segura de que se lembram da cantora, é carregada de felicidade, predominantemente concentrada na caixa torácica e depois um pouco na zona dos joelhos - principalmente o esquerdo -, que vos digo que voltei a encontrar a estonteante Ágata algures pelas redes sociais. É verdade, sintam-se à vontade para festejarem e libertarem algumas lágrimas, fruto dessa inegável felicidade que é saberem que podem reintegrá-la na vossa vida, se assim o desejarem.

Com este reencontro, descobri o seu lado espiritual mais recente. A cantora - que sabia de telefonemas, que leu bem cartas e poemas, assim como também viu aquele retrato que, ao limpar o quarto do amado traidor, ai, ela descobriu - é agora uma expert no que diz respeito a Anjos. Não ao Sérgio e o Nelson, mas sim àqueles gordinhos com asas nas costas que andam geralmente caçapos.

Ágata teve uma vida difícil, como nos contam as suas músicas. Após alguma pesquisa, aprofundei os meus conhecimentos sobre as lutas da artista e vou fazer um resumo biográfico para que entendam o presente, que me fez reencontrar a agora perita em Anjos Guardiões.

Sim, a desafortunada cantora soube dos sonos agitados que ele, o seu amado, tinha descaradamente ao seu lado, dizendo sem fim o nome de quem amava. Ele chamava pela outra mulher mesmo ao pé de Ágata. Depois de lhe ter pedido repetidamente para sair da sua vida, levando com ele o perfume da outra mulher, apelidou de bendita a hora que ele deixou a sua vida, pois a separação era, sem dúvida, a única saída. Para ela, um mais um são dois, e não são três. Reparem na subtileza com que aborda matemática, de forma tão modesta, em composições desta dimensão emocional e expõe o seu conhecimento mais científico. Mostra-se aqui, mais uma vez, guerreira da vida, porque mesmo tendo passado por tanto, continua certa de que um mais um são sempre dois, excluindo a hipótese de ser alguém com profundas limitações cognitivas.

Como pode acontecer a qualquer um, também ela errou. Foi maldito o dia que ela o deixou regressar. A cicatriz metafórica que já mal se via, acabou por voltar. Ai, e as noites de insónia, de espera, de pura maldição. Foi maldito o dia em que ela abriu outra excepção. Este erro deixou-a entregue a um dilema complexo, que merece a nossa atenção. Esse maldito amor que a enlouquece, às vezes parece que faz bruxedo, pois é enorme o que ela sente. Ama o amor com medo. O amor, esse maldito, já fez magia, mas agora receia sofrer mais outro desengano - nem só "mais", nem só "outro", nada menos "mais outro", reparem no reforço de intensidade. Ágata chega, então, a um ponto em que já não sabe se ama esse amor mais do que o odeia.

Mas, na vida, tudo passa. O tempo vai passando e com ele, a dor também. É na música "Sozinha" que conseguimos vê-la reerguer-se da dupla desilusão. Está, nesta altura, quase a conseguir que a dependência daquele amor seja só uma recordação má. Está, mais do que isso, quase a aprender a viver do modo que está, mais sozinha do que nunca, mas feliz. Finalmente, sente-se prestes a tirar a sombra do anterior amado do seu ser e, assim, de uma vez por todas, a saber gostar dela própria.

Sugere que o traste não resolva aparecer pois, se o fizer, garante que lhe dirá, na cara, o que nunca conseguiu. A verdade é que prefere estar sozinha do que ter o traidor consigo, da maneira que ele era. Prefere estar sozinha que ao menos assim não se ilude, nem naufraga ou se afunda naquele mar de traições. Prefere estar sozinha, como afinal sempre esteve. Não precisa de chorar nem de saber amar por dois.

Agora que estamos todos mais próximos de Ágata, é-nos mais fácil compreender o seu novo “eu”, dedicado aos Anjos. A quem ainda não teve a felicidade de encontrar a página da artista, sugiro, deixando implícita alguma obrigatoriedade, que a visitem e acrescento que, diariamente, é publicado um vídeo de dicas relacionadas com a procura dos nossos Anjos da Guarda, que diz serem guardiões e algo semelhante a representantes de Deus. Desde ajudas para encontrar o nome dos nossos Anjos – que, desvendando já um pouco, pode ser descoberto com uma rápida pesquisa na internet com a data de nascimento e outro qualquer dado que agora não sei precisar –, à melhor forma de construir um altar para eles, a Ágata dá-nos um pouco de si, partilha a sua sabedoria e o tom de voz que usa nas gravações é bastante reconfortante.

Agora roubando um espacinho para uma confissão pessoal, estou até tentada a dormir ao som desses vídeos. Tenho a impressão que a voz dócil me saberá a cafunés feitos ao de leve com muito carinho.

É também importante referir que, segundo a entendida, temos uma Anjo que nasce e morre connosco, portanto, isso de se dizer que o Anjo da Guarda é algum ente querido que, lamentavelmente, faleceu, é reprovado por Ágata. Outro tema que me intrigou, no decurso desta intensiva pesquisa, foi o facto de os Anjos serem todos da Guarda. Um país tão grande e vem tudo do mesmo sítio. Quem me dera um Anjo da Baixa da Banheira.

Tssssschau. Um beijo no indicador. Ai, porra, cadê o gloss agora.

P.S.: Para a compreensão da despedida é necessário que estejam familiarizados com as dicas semanais da estrela.

P.S.1.: Para a redacção do presente texto foram necessárias várias consultas às letras de três músicas da artista: Sozinha, Maldito Amor e Perfume de Mulher.

P.S.2: Adoro-te, Ágata.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Viagem Viole(n)tta

Ervilhá, diz a ervilha sacudindo o pó.

Regressámos da terceira paragem, não cardíaca, da lata. Certo dia, a ervilha lembrou-se de voltar a dar uso aos pulmões adormecidos e, uma vez que respirava de novo, voltou a dar uso à vida e foi para Lisboa. Para recuperar a actividade na Lata, a ervilha escreveu um relato da viagem de ontem porque, convenhamos, os transportes públicos são o melhor cenário. Ora, apreciem. Ou leiam só.

É dia 24 de Janeiro. Estou no comboio, a caminho de Lisboa. Deu-se o azar de ser dia de concerto da famosa Violetta, uma jovem argentina que, aparentemente, dá sentido à vida de uma enorme parte das crianças que vêem o Disney Channel.

Entrei na segunda estação onde este comboio pára. Para chegar a Lisboa, demoro cerca de quatro horas – ocultemos os constantes atrasos. Aproximadamente meia hora após a minha entrada, os quatro bancos separados por uma mesa, daqueles para viagens de grupinhos, foram ocupados por duas mães e seus dois rebentos com talvez sete anos, portadoras de uma leve – mas provavelmente natural e expectável – síndrome de histeria.

Pouco tardaram a sentir-se em casa. Ah, como é bom este à vontade nos transportes públicos. Sei já que uma delas é a Maria – que, atenção, não costuma ser tratada por Mariazita, como o senhor pica tentou adivinhar – e a sua fiel amiga, a Carolina. O pica não questionou a moça, mas algo me diz que a tratam por Carol.

Inicialmente, tomaram a decisão de se entreterem com o didáctico e conhecido Jogo do Stop, pena que não tenham vindo munidas de papel e caneta. Foi um Stop diferente, original, muito geração que arrisca e considera palerma poupar a paciência dos restantes passageiros. Não podendo ser escrito, todo o jogo foi verbalizado oralmente. Ora, tão bom. Enquanto insisto em ler o livro que repousa no meu colo, mergulhada na história, dou por mim a procurar, mentalmente, animais que comecem com a letra F. Quatro pessoas e só conseguem dizer formiga. Num impasse, claramente em esforço, as quatro debatem a impossibilidade de todas conseguirem responder. Frango, foca, flamingo, furão. Não era assim tão difícil.

Talvez cansadas, e após um relato quase poético de uma ida à casa de banho da Carol e da sua mãe – com tanta partilha, sinto-me à vontade para a chamar Carol – acalmaram durante uns ternurentos cinco minutos. Li e reli inúmeras páginas, uma vez que a minha concentração decidiu dançar entre o livro e as duas crianças, potencialmente futuras artistas.

Denoto um pico de energia nas crias que, com um qualquer aparelhómetro cor-de-rosa, criaram e ocuparam o cargo de DJ da carruagem 21. É neste momento que todos os passageiros recebem a mensagem divina: vamos assistir a um tributo à grande Violetta. Não consigo conter a emoção e gratidão, vinha abatida porque, embora esteja a caminho de Lisboa, não vou assistir ao concerto. Obrigada, Carol e Maria. 

Ergueram-se dos bancos e os decibéis adoptaram também o caminho ascendente. Aí está, já não ouço o meu soluçar interior, sinto-me num concerto. Salvaram-me da minha angústia. Saltam dos bancos para dançarem mais à vontade, ignoram todos os possíveis constrangimentos. As mães incentivam e soltam múltiplas e estridentes gargalhadas. Isto sim, incentivar e acreditar no potencial artístico dos filhotes. Maria arrisca mais, no meio do corredor, entre os bancos, aposta numa descontracção pélvica que roça a sensualidade infantil – isto foi ligeiramente sinistro, tanto de ver, como de escrever. Suponho que este acto esteja directamente relacionado com o comprimento da saia da Violetta. Marotos, esses produtores da Disney.

Alguns risos, uns menos desesperados que outros, surgiram naturalmente, o que levou as duas Violettinas a exclamarem “somos as palhacinhas do comboio”, ao que se seguiu a confirmação dada pelas progenitoras. Quem me dera que a minha mãe me chamasse palhacinha. Quem me dera ter a amplitude pélvica da Maria e o bilhete para o concerto na carteirinha.

Desgastadas pela performance digna do maior palco do mundo, ponderam dormir uma sesta. Comovi-me neste momento, dei por mim a largar o livro, juntar as mãos em jeito de oração e a pedir que ferrassem o galho sem mais demora. Inicia-se, então, o debate sobre a ocupação dos lugares e as posições que pretendem adoptar enquanto cochilam. A Carol sugere que as mães mudem de lugar para que elas se possam esticar à vontade. Notem-se aqui os primeiros sinais do Complexo de Diva. Aparentemente capazes de fazer carreira na música, sentem-se no direito de expulsar as progenitoras para ficarem mais confortáveis. As mães, no entanto, não cederam, o que fez com que as jovens desistissem de dormir. Chorei.

Nova actividade. Estão familiarizados com aqueles joguinhos com coreografia de mãos e cantiga? Fizeram um desses, improvisado. Desconfio que tentaram seduzir um crianço no intervalo das carruagens pois cantavam “quando fui à casa de banho, vi um rapaz do meu tamanho”. Nesta altura, chega de novo o senhor pica, que se senta nos bancos ao lado e puxa conversa. Uma das mães lança algum charme, passando a mão pelo cabelo, inclinando o rosto, sorrindo e falando baixinho. Senti-me atraída e sou heterossexual.

Com a converseta, entendo que as raparigas têm efectivamente sete anos e que, afinal, há esperança para mim, que até então nunca tinha acertado na idade de ninguém. O pica desabafa, depois de ser questionado pela mãe engatatona, sobre o cansaço das viagens de longo curso, e alimenta a conversa, contando que “ainda ontem vinha um grupo de catorze pessoas para verem a Violetta”. Eis que após o quase emotivo desabafo do pica, sou presenteada com uma confissão das duas progenitoras “nós também somos muito fãs mas ainda estamos contidas”. Reparem: “ainda”.

Não consigo parar de tentar imaginar as quatro no concerto enquanto a Carol e a Maria iniciam um workshop espontâneo de sapateado e o meu traseiro é acariciado, através do banco, pelo pé do passageiro de trás. Deduzo que tenha um problema no joelho e precise de ir alongando.

Parámos durante algum tempo para ceder passagem a outro comboio e a Carol, perspicaz, diz “isto é estranho”, num tom dramático. Senti um aperto no coração. Passa-se algum tempo e descobre-se que à frente das Violettinas, está uma senhora acompanhada pela sua cria que, tal como elas, vão assistir ao concerto. Até ali discretas, denunciaram-se quando a mãe interrompeu a conversa das progenitoras da Carol e da Maria para se juntar ao debate sobre a qualidade da série televisiva. O tema central da troca de opiniões foi a beleza de um novo actor na segunda temporada. Ora, amizade profunda não pôde ser travada, uma vez que a mãe número 3, loiraça e de botas vermelhas – com um tacão mesmo de quem não está, claramente, familiarizada com o conceito de concerto – diz cheia de certeza e convicção, naquele debate técnico, que o actor da nova temporada é “feioso”.

Ri. Fecho o caderno, que estou quase a chegar.