segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Viagem Viole(n)tta

Ervilhá, diz a ervilha sacudindo o pó.

Regressámos da terceira paragem, não cardíaca, da lata. Certo dia, a ervilha lembrou-se de voltar a dar uso aos pulmões adormecidos e, uma vez que respirava de novo, voltou a dar uso à vida e foi para Lisboa. Para recuperar a actividade na Lata, a ervilha escreveu um relato da viagem de ontem porque, convenhamos, os transportes públicos são o melhor cenário. Ora, apreciem. Ou leiam só.

É dia 24 de Janeiro. Estou no comboio, a caminho de Lisboa. Deu-se o azar de ser dia de concerto da famosa Violetta, uma jovem argentina que, aparentemente, dá sentido à vida de uma enorme parte das crianças que vêem o Disney Channel.

Entrei na segunda estação onde este comboio pára. Para chegar a Lisboa, demoro cerca de quatro horas – ocultemos os constantes atrasos. Aproximadamente meia hora após a minha entrada, os quatro bancos separados por uma mesa, daqueles para viagens de grupinhos, foram ocupados por duas mães e seus dois rebentos com talvez sete anos, portadoras de uma leve – mas provavelmente natural e expectável – síndrome de histeria.

Pouco tardaram a sentir-se em casa. Ah, como é bom este à vontade nos transportes públicos. Sei já que uma delas é a Maria – que, atenção, não costuma ser tratada por Mariazita, como o senhor pica tentou adivinhar – e a sua fiel amiga, a Carolina. O pica não questionou a moça, mas algo me diz que a tratam por Carol.

Inicialmente, tomaram a decisão de se entreterem com o didáctico e conhecido Jogo do Stop, pena que não tenham vindo munidas de papel e caneta. Foi um Stop diferente, original, muito geração que arrisca e considera palerma poupar a paciência dos restantes passageiros. Não podendo ser escrito, todo o jogo foi verbalizado oralmente. Ora, tão bom. Enquanto insisto em ler o livro que repousa no meu colo, mergulhada na história, dou por mim a procurar, mentalmente, animais que comecem com a letra F. Quatro pessoas e só conseguem dizer formiga. Num impasse, claramente em esforço, as quatro debatem a impossibilidade de todas conseguirem responder. Frango, foca, flamingo, furão. Não era assim tão difícil.

Talvez cansadas, e após um relato quase poético de uma ida à casa de banho da Carol e da sua mãe – com tanta partilha, sinto-me à vontade para a chamar Carol – acalmaram durante uns ternurentos cinco minutos. Li e reli inúmeras páginas, uma vez que a minha concentração decidiu dançar entre o livro e as duas crianças, potencialmente futuras artistas.

Denoto um pico de energia nas crias que, com um qualquer aparelhómetro cor-de-rosa, criaram e ocuparam o cargo de DJ da carruagem 21. É neste momento que todos os passageiros recebem a mensagem divina: vamos assistir a um tributo à grande Violetta. Não consigo conter a emoção e gratidão, vinha abatida porque, embora esteja a caminho de Lisboa, não vou assistir ao concerto. Obrigada, Carol e Maria. 

Ergueram-se dos bancos e os decibéis adoptaram também o caminho ascendente. Aí está, já não ouço o meu soluçar interior, sinto-me num concerto. Salvaram-me da minha angústia. Saltam dos bancos para dançarem mais à vontade, ignoram todos os possíveis constrangimentos. As mães incentivam e soltam múltiplas e estridentes gargalhadas. Isto sim, incentivar e acreditar no potencial artístico dos filhotes. Maria arrisca mais, no meio do corredor, entre os bancos, aposta numa descontracção pélvica que roça a sensualidade infantil – isto foi ligeiramente sinistro, tanto de ver, como de escrever. Suponho que este acto esteja directamente relacionado com o comprimento da saia da Violetta. Marotos, esses produtores da Disney.

Alguns risos, uns menos desesperados que outros, surgiram naturalmente, o que levou as duas Violettinas a exclamarem “somos as palhacinhas do comboio”, ao que se seguiu a confirmação dada pelas progenitoras. Quem me dera que a minha mãe me chamasse palhacinha. Quem me dera ter a amplitude pélvica da Maria e o bilhete para o concerto na carteirinha.

Desgastadas pela performance digna do maior palco do mundo, ponderam dormir uma sesta. Comovi-me neste momento, dei por mim a largar o livro, juntar as mãos em jeito de oração e a pedir que ferrassem o galho sem mais demora. Inicia-se, então, o debate sobre a ocupação dos lugares e as posições que pretendem adoptar enquanto cochilam. A Carol sugere que as mães mudem de lugar para que elas se possam esticar à vontade. Notem-se aqui os primeiros sinais do Complexo de Diva. Aparentemente capazes de fazer carreira na música, sentem-se no direito de expulsar as progenitoras para ficarem mais confortáveis. As mães, no entanto, não cederam, o que fez com que as jovens desistissem de dormir. Chorei.

Nova actividade. Estão familiarizados com aqueles joguinhos com coreografia de mãos e cantiga? Fizeram um desses, improvisado. Desconfio que tentaram seduzir um crianço no intervalo das carruagens pois cantavam “quando fui à casa de banho, vi um rapaz do meu tamanho”. Nesta altura, chega de novo o senhor pica, que se senta nos bancos ao lado e puxa conversa. Uma das mães lança algum charme, passando a mão pelo cabelo, inclinando o rosto, sorrindo e falando baixinho. Senti-me atraída e sou heterossexual.

Com a converseta, entendo que as raparigas têm efectivamente sete anos e que, afinal, há esperança para mim, que até então nunca tinha acertado na idade de ninguém. O pica desabafa, depois de ser questionado pela mãe engatatona, sobre o cansaço das viagens de longo curso, e alimenta a conversa, contando que “ainda ontem vinha um grupo de catorze pessoas para verem a Violetta”. Eis que após o quase emotivo desabafo do pica, sou presenteada com uma confissão das duas progenitoras “nós também somos muito fãs mas ainda estamos contidas”. Reparem: “ainda”.

Não consigo parar de tentar imaginar as quatro no concerto enquanto a Carol e a Maria iniciam um workshop espontâneo de sapateado e o meu traseiro é acariciado, através do banco, pelo pé do passageiro de trás. Deduzo que tenha um problema no joelho e precise de ir alongando.

Parámos durante algum tempo para ceder passagem a outro comboio e a Carol, perspicaz, diz “isto é estranho”, num tom dramático. Senti um aperto no coração. Passa-se algum tempo e descobre-se que à frente das Violettinas, está uma senhora acompanhada pela sua cria que, tal como elas, vão assistir ao concerto. Até ali discretas, denunciaram-se quando a mãe interrompeu a conversa das progenitoras da Carol e da Maria para se juntar ao debate sobre a qualidade da série televisiva. O tema central da troca de opiniões foi a beleza de um novo actor na segunda temporada. Ora, amizade profunda não pôde ser travada, uma vez que a mãe número 3, loiraça e de botas vermelhas – com um tacão mesmo de quem não está, claramente, familiarizada com o conceito de concerto – diz cheia de certeza e convicção, naquele debate técnico, que o actor da nova temporada é “feioso”.

Ri. Fecho o caderno, que estou quase a chegar.

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